sábado, 3 de fevereiro de 2024

Ainda somos e vivemos como nossos pais?

 


Síndrome da Raposa

Guilherme Guiraldelli Moreira[1]

Nessa vida já fui de tudo. Desde criança, eu já permitia meus devaneios e criatividade exacerbada. Na infância fui tudo que a mente me permitiu enquanto vivia com pessoas que não entendiam o que se passava na minha cabeça. Delas eu tinha pena, por serem limitados e não entender o quão extraordinário era o que minha imaginação podia criar...

Enquanto vivíamos nesse sistema imposto, corrupto e malhado, antes mesmo de eu nascer... Já dizia Cazuza! Outra que dizia era Elis. E como ela dizia! Pena mesmo é só entender Elis depois de adulto. Imagina o quão extraordinário minha imaginação poderia ter criado na infância?

Voltando no que ela dizia, mesmo que crescemos e conseguimos ter atitudes distintas de quem nos criou, ainda somos e vivemos como eles. Um outro que escreveu sobre isso foi Vygotsky. Para ele, a fonte primária da formação da pessoa é onde uma criança cresce. Para contribuir, li Foucault que menciona os corpos transformados na medida em que os reguladores da sociedade têm necessidades. Pena, de verdade, é isso: eu demorar tanto tempo para ter esse conhecimento. Imagina o quão extraordinário minha imaginação poderia ter criado sabendo disso tudo...

Mas tá tudo bem. Poderia ter sido, mas foi melhor assim. Se muita gente já não me compreendia com as parcas informações que eu tinha, poderia, com estes outros saberes, parar em um manicômio, apenas por ter acesso a esse saber. Não tenho dúvidas! Eu conheço esse pessoal há quase 35 anos dessa existência. E quer saber? Foi melhor assim!

Eu fui crescendo, como nossos pais, assim eles como nossos avós, e assim por diante. Fui moldado e adocicado para me "encaixar" na sociedade, porém minha imaginação e criatividade continuaram na ativa. Para que bens materiais fossem garantidos ao usufruto da família, eu precisei trabalhar, quando na minha infância foi necessário contribuir. Se eu pontuar o tanto de atividades remuneradas que desenvolvi, dá para esgotar caracteres em uma mensagem de WhatsApp e eu não me lembrar de todas. Mas na verdade, o que realmente importa, é que quando eu estava no desempenho de minhas funções, minha imaginação extraordinária estava me projetando para fora daquele sistema. Pensa numa capacidade incrível de arquitetar planos...

Pois bem, minha mente e imaginação planejam diariamente tantos sonhos, desejos, tantas metas a conquistar...

Não significa que não estou satisfeito com o que tenho e vivo. Significa que eu tenho a esperança que tudo pode melhorar. Tanto para mim, quanto para a humanidade no geral. E mesmo compreendendo as infinitas possibilidades do incerto, eu prefiro cocriar na minha imaginação, essa possibilidade incrível que ainda há de ser...

Enfim, eu só apresentei estes fatos até o momento, para dar contexto e justificar o laudo de um transtorno que eu acabo de descobrir que tenho. Esse transtorno ainda não foi catalogado pela comunidade científica, nem possuí estudos sobre, ou tratamento indicado. Eu acabo de descobrir e cunhar o transtorno. Deixo registrado, caso algum dia, alguém venha a apresentar estereotipias semelhantes. Batizei este transtorno de Síndrome da Raposa. O nome deriva da personagem Raposa, presente na obra O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry.

Essa raposa também diz muita coisa, viu...

Uma das coisas que ela diz é sobre como cativar e também ser responsável por aquilo que ativa. E é isso que caracteriza a síndrome – que por sinal, possui semelhanças com o Complexo de Electra e, também, com o complexo de Édipo[2].

A título de curiosidade, eu só conheci o livro do pequeno príncipe e a personagem da raposa há menos de 10 anos. Imagina se houvesse ocorrido antes o que minha imaginação extraordinária da infância teria sido capaz de fazer...

Percebendo algumas trajetórias que se repetem desde a infância, cunhei o termo. Tudo surge de um devaneio de entender os círculos e ciclos da minha vida enquanto, parafraseando Maria Rita, percebo as repetições da vida na estação. Diariamente. Talvez o transtorno poderia se chamar de "Síndrome da Raposa Perdida", ou então, "Síndrome da Raposa de Maria Rita". Acho melhor explicar o que acontece comigo, a repetição de padrões e cabe a você decidir um nome melhor qualificado.

É assim:

Tudo começa com você (não você leitor, mas sim você, a pessoa a quem dedico minha atenção quando estou em momentos de crise). Você tem vários nomes, várias idades, vários gêneros, várias sexualidades, várias etnias. Você nunca é uma pessoa só, você apresenta alteridade conforme a vida vai/foi passando.

Agora percebi que eu carrego essa síndrome desde criança, auxiliada por minha imaginação extraordinária e ela está comigo até hoje. O que muda é o tempo de duração das crises. Lembra que na história do pequeno príncipe a raposa ensina a cativar e aponta a responsabilidade sobre esse cativar?

Acompanhe minha situação:

Na minha infância, por volta dos 4 a 5 anos, eu me encantei por você. Uma moça que, apesar de ter 15 anos, era por mim completamente admirada. Eu fazia de tudo para cativar sua atenção, queria estar presente, ser necessário na sua vida. Até que eu me mudo do bairro e nunca mais te vejo. Fico sem poder sentir o que sentia.

Minha segunda crise foi aos 9 anos. Você se apresenta de uma forma "inalcançável" para mim. Mesmo sabendo da nossa diferença social, eu começo a te admirar, cultivar um encantamento por você e, tentando me fazer necessário na sua vida, investi em inúmeras tentativas de cativar sua atenção! Até que em determinado dia, o ensino fundamental chega ao fim e cada um de nós segue sua vida. Mais uma vez eu não disse o que sentia.

A próxima crise, se apresentou em meados do primeiro ano do ensino médio e durou três anos. Dessa vez, você é uma garota enigmática, fala de magia, bruxaria e energias. Você se torna meu alvo de adoração. Eu te idolatro, cultivo admiração, faço de tudo para estar perto, tento cativar sua atenção, ser necessário! Dessa vez, tento fazer algo diferente e me declaro para você! Ao não corresponder ao que disse que sentia, ao recusar receber minha atenção, você partiu meu coração. Não pela recusa, mas pelas palavras duras e sem empatia que utilizou para recusar o que eu gostaria de te dar. Essa crise demorou a ser superada.

Contudo, o tempo passa, eu estou com quase 22 anos e você entra novamente na minha vida. Dessa vez é um homem, dois anos mais velho que eu. O que começo a sentir por você despertou coisas que até então eu fazia de tudo para esconder. Novamente quero estar perto, novamente tento cativar sua atenção, dessa vez me declaro a você e ao mundo!

Dessa vez, você vê que me ter a seu lado pode ser vantajoso. Não para corresponder às minhas intenções. Pelo contrário. Você se utiliza esse sentimento declarado para alimentar seu ego, para que eu seja seu confidente e encubra as vezes que fugiu de sua família. Numa dessas fugidas, você encontra alguém e começa a compartilhar a vida com ele. Apesar disso, você quis me manter por perto. Em um jogo de “morde e assopra”, manteve o que eu fiquei disposto a fazer por você! E...

Seu companheiro foi embora, você atrás dele e eu... Eu fiquei aqui. No entanto, mantivemos contato. E... Você me convida a ir atrás de você. Você me diz que se sente só. Eu largo tudo aqui e vou para o Rio Grande do Sul. Atrás de você. Para cativar sua atenção, me fazer necessário na sua vida. Mal cheguei, brigamos. E, então inicia um longo tempo sem se bicar...

Daí em diante, as crises em mim foram se tornando menores em tempo de duração.

Mas eu ainda me declarava...

Teve aquela vez em que você era um estudante de nutrição, dividia quarto comigo, adotamos um urso de pelúcia juntos... Descobri que para você eu sempre fui um amigo. Esta crise durou um ano e meio.

Naquela outra vez, durou um ano, quando você era aquele estudante de filosofia. Em outra, você foi o carinha do cinema, que se preocupava comigo e me fazia sentir bem. Esta nova crise durou outro ano e meio. Naquela época você disse que era impossível me acompanhar pois sua sexualidade não era compatível com a minha.

Daquela outra vez, que você foi o estudante de letras perdido, que chegava no meu quarto perdido, procurando alguém para estar perto, foram apenas 8 meses...

E, depois, aquele outro estudante de filosofia. Eu sentia que você até retribuía o que eu fazia por você, mas, dessa vez, era você que estava perdido nas suas desilusões. Então eu volto para casa. Para São Paulo.

Durante uma pandemia toda eu não vislumbro você em lugar nenhum. Até que eu chego na Unesp. Você e eu agora seguimos um padrão. Para começar, eu não me declaro mais. Você agora é sempre um estudante de história, exceto daquela vez que você era estudante de serviço social. E o tempo de duração das crises é de 4 meses.

Agora, pense bem, não é que você tá aparecendo novamente, com outra configuração do ser...

E é a partir da sua chegada que eu percebi e faz me entender a "Síndrome da Raposa". Eu percebo que é um transtorno, por ser uma armadilha que eu mesmo crio. Eu já estou tentando me fazer presente na sua vida, tentando cativar sua atenção, tentando me fazer necessário.

Hoje, chegando aos 35 anos, percebo que além de causar esse transtorno, vejo que não sei me relacionar com você. Nenhuma vez que você esteve na minha vida eu consegui me fazer entender. Compreendi também que você se aliou a minha criatividade extraordinária, para me auxiliar na projeção do melhor. Aquela que eu sempre tenho esperança. Confesso, a esperança maior é de que um dia minha síndrome não seja tão assustadora para você e que consiga compreender é que eu quero a sua companhia para projetar junto de mim. Até esse dia chegar, eu encontrarei você em infinitas possibilidades, tentando te cativar, me fazer presente e necessário na sua vida. Quiçá, possa ter um futuro no qual eu tenha cativado você de tantas formas diferentes e perceber que, no fundo, cativei a mim mesmo.

Cativei para ter vontade de seguir adiante.

Pode ser, quando esse dia chegar, que você encontre com algum outro você, ou até outra pessoa, ou que você também continue sozinho. Isso não importa. O que importa é que eu serei eternamente grato e trarei na memória todas as crises que você me possibilitou.

Todas as vezes em que você me permitiu ir além.

Talvez eu chegue no fim da minha experiência terrena e vou me encontrar sozinho fisicamente. Mas nunca estive sozinho.

Sempre tive você, fazendo parte da minha vida, desde a minha infância. Graças a uma imaginação extraordinária, à "Síndrome da Raposa" e à você!

Ah, e, afinal, depois de tanto papo de maluco, o que pensa da síndrome que sofro?

 



[1] Pedagogo, Especialista em Educação, Graduando em História, escreveu este texto em 04/09/2023.

[2] Termo criado por Freud e inspirado na tragédia grega Édipo Rei, designa o conjunto de desejos amorosos e hostis que o menino enquanto ainda criança experimenta com relação a sua mãe, e embora seja muito discutido na área da psicologia e psicanálise não é uma teoria cientificamente aceita por carecer de evidências. O suposto fenômeno psíquico também ocorre nas meninas com relação ao pai, mas a este se dá o nome de Complexo de Electra.

Esparsos, não perdidos

Olá

Em 2024, aqui no blog da sala de leitura, vamos publicar textos diversos e esparsos de pessoas que circularam por este ambiente universitário  a sala de leitura Erico Verissimo  em tempos idos.

Intitulei esta série de publicações como “Esparsos, não perdidos”.

O primeiro – "síndrome da raposa" – foi escrito pelo Guilherme. Eu o conheci como estudante de Pedagogia e tive o prazer de vê-lo em sala de aula, atuando como professor estagiário com uma turma inteligente e criativa. Isso em Pelotas, entre os anos 2013 e 2018.

Guilherme alçou voo, estuda, pensa, escreve, ama. Seu escrito é corajoso, intenso, único.