Ao abordar um assunto polêmico – a retirada do Enquanto o sono não vem, de José Mauro Brant – Celso Gutfreind[1]
defende “dizer a verdade e contar uma boa história” em interessante artigo
publicado neste fim de semana no Caderno PROA de Zero Hora. Leia aqui, na íntegra:
"Do que se pode falar na literatura
infantil?"
Celso Gutfreind
Ao abordar um assunto polêmico como a retirada de um livro do currículo escolar, ocorre-me um ensaio do escritor israelense
Amos Oz. Chama-se Como Curar um Fanático. No olho do furacão de outra grande polêmica, o romancista
declara que o problema de um fanático é a certeza. Não é para fanáticos a escolha de um
repertório literário para o público infantil. Para acompanhar as minhas
dúvidas, recebo a visita de alguns ficcionistas disfarçados de psicólogos.
Wilfred Bion pinçou, nas cartas entre o poeta John Keats e a irmã, um dos
conceitos mais úteis para a psicanálise e a vida. Ele chamou de
"capacidade negativa" o talento de suportar o tempo necessário em que
não sabemos. Atropelá-lo com alguma certeza precipitada pode ser fatal para a
capacidade de elaboração e conhecimento.
Mas uma espera também é feita de procura e, nessa hora, convém ler,
ouvir, informar-se. À mesma época de Bion, Bruno Bettelheim foi fundamental
para a retomada do interesse dos contos de fada junto às crianças. Na década
1970, pais e educadores ainda tinham um ranço com essas histórias repletas de
terror e violência. Eles estavam convictos de que fariam mal. Bettelheim
mostrou a importância delas para a vida emocional. Ao invés de provocar
sequelas, elas proporcionam uma capacidade de lidar com os terrores, porque,
através da história, a criança pode representá-los. E o que mais podemos diante
da dor, da tristeza e da morte, senão falar sobre isso?
Bettelheim já não estava sozinho. Maud Mannoni foi outra que
engrossou o caldo desse feijão de letras. Para ela, os contos tradicionais não
eram piores do que aqueles que habitam normalmente a cabeça de uma criança.
Censurá-los seria mostrar um desconhecimento da infância como ela é. E, pior,
abrir mão de um instrumento fundamental como previra Bettelheim.
Não há, portanto, assunto a ser evitado com uma criança,
especialmente se ela se interessa por ele, o que é mais frequente do que
gostaríamos. Crianças costumam se interessar por todos os assuntos da vida, o
que inclui a dor, o sexo, a morte. Por isso, espanta a retirada do livro Enquanto o sono não vem, de José Mauro
Brant, das leituras aprovadas para alunos entre sete e oito anos. O motivo: um
dos contos aborda o assédio sexual de uma menina por seu pai.
A questão já não é de conteúdo, mas de forma. Podemos e devemos ter
dúvidas sobre o quanto Brant ou qualquer outro escritor da infância respeita em
sua obra a construção de uma boa metáfora, justo o que a criança precisa para
se sentir à vontade diante dos assuntos mais doloridos. Mas, se voltar a moda
de censurar histórias pelo seu conteúdo, corremos o risco de abrir mão do que é
mais sagrado no universo de uma vida: a verdade. E, por conseguinte, no
universo da leitura, onde o que vale é uma boa história, banhada de ritmo e
símbolos, arte capaz de fomentar sem ameaça o pensamento, o sentimento e,
sobretudo, a imaginação. René Diatkine lembrou-nos de que nada pode ser mais
saudável do que poder contar para si mesmo outra história.
Sei que não sou isento. Há anos venho abordando temas polêmicos em
minhas histórias para crianças. Já falei de sexo e de morte para os bem
pequenos e, com frequência, eu o fiz na contramão de pais e educadores. Acabo
de publicar um livro chamado Monstros e Ladrões, que põe em cena a
violência urbana de nossas cidades repletas de insegurança. O meu maior desafio
continua sendo contar uma história com poesia, estrutura, sonoridade e humor. O
livro faz parte de um projeto pedagógico chamado Tá Ligado, mas a minha responsabilidade como pessoa foi não mentir.
E, como escritor, tentar fazê-lo com arte e capacidade simbólica suficiente
para dissipar a crueza de alguma versão inapropriada. Aprendo muito com os
contos de fada e suas tramas postas em um passado indeterminado e, assim,
seguro.
Tenho dúvidas de se vai interessar a todas as crianças e quando o
fará, já que necessidades são dinâmicas e individuais. Felizmente, tenho
recebido a companhia de muitos educadores e pais que já não duvidam de algumas
quase certezas: convém dizer a verdade e contar uma boa história pode ser a
melhor forma de consegui-lo.
[1] O psicanalista e escritor Celso Gutfreind reflete sobre a retirada das
escolas de livro para crianças com conto que aborda o incesto. Publicado em 16/06/2017.
Nenhum comentário:
Postar um comentário