Cristina Maria
Rosa
Conceito grafado por mim pela primeira vez em 2016, a alfabetização literária vem sendo uma prática que desenvolvo desde 1995, quando dei início a um processo familiar de formação de um leitor que hoje atingiu a maturidade, caracterizada por mim como intensidade, diversidade, fluência, independência, autonomia e gosto literário próprio. Por isso mesmo, me atrevo a grafar o conceito e busco, em outras relações, oferecer princípios e procedimentos para que estes saberes extrapolem minhas conquistas pessoais e indiquem generalizações possíveis e mesmo desejáveis, uma vez que se trata de um campo de saber visceral para o cérebro humano e para a escola, em especial.
Uma das inteligências a ser desenvolvida
ainda na infância, a alfabetização quanto à linguagem verbal é um processo que
demanda pensamento, atitude, avaliação. Ininterruptamente. Assim, deve ser
mediada por atitudes de escolha de procedimentos e artefatos cada vez mais
sofisticados que exigem comprometimento do adulto com a criança que está sendo
iniciada.Artefatos culturais –
livros, e-books, cd’s, revistas, vídeos, jogos, brinquedos – precisam ser
acionados e seus conteúdos mediatizados através de leituras, diálogos,
indicações, compartilhamentos, trocas de impressões. A diferença que há entre
jogar só ou em grupo, todos nós adultos, já conhecemos. No processo de
aquisição de saberes, para a criança, é imprescindível a companhia.
Mas, sim, a
alfabetização literária é, também, um processo particular, ou seja, é vivida
individualmente por cada sujeito a ela submetido que, necessariamente, atribui
valores e sentidos muito próprios ao acontecimento, ao jogo e a suas regras,
nem sempre os mesmos atribuídos por seu "professor".
Mas, o que é, para
mim, alfabetizar literariamente uma pessoa? Como conceituo a alfabetização
literária?
Compreendo a Alfabetização Literária como um
processo de apresentação do mundo da literatura ao outro. Um processo que
pressupõe três atores:
ü
um sujeito que deseja – o futuro
leitor, a quem a apreciação deve ser ensinada, uma vez que o gosto pela leitura
não é um atributo genético;
ü
um sujeito que ama – o leitor e suas
práticas leitoras;
ü
um objeto de desejo: o livro, a
literatura.
O processo – a
alfabetização literária – acontece em um “pacto”, vivido no texto não escrito
(Queirós, 2011): um diálogo proposto pelo autor ao leitor. Ao mesmo tempo
insondável e experimentação, a obra não escrita, a interação, é que revela o
literário do pacto e “produz” a obra literária, ao mesmo tempo em que inicia o
sujeito nos “segredos” da leitura.
Para a completude do
processo, é interessante que exista no mediador a capacidade de selecionar
“livros que fascinam” e a compreensão de que a leitura literária pressupõe “uma
prática cultural de natureza artística” na qual a “interação prazerosa” com o
texto lido é estruturante. Para Graça Paulino (2014) a “dimensão imaginária”
garante a invenção de “outros mundos, em que nascem seres diversos, com suas
ações, pensamentos, emoções”.
Um desejo - ensinar o
gostar de ouvir e ler - deve orientar todo o processo.
A certeza de que,
maduro, o leitor pode escolher outros laços, outras letras, outras fontes,
integra o desprendimento necessário e bem vindo de parte de quem alfabetiza.
E
os bebês?
Bebês possuem
repertório literário? Se sim, como podemos ampliá-lo? Se não, como podemos
inserir nosso bebês em práticas de leitura literária? A quem cabe esta tarefa?
Pais? Professoras? Cuidadoras? Avós? Irmãos mais velhos?
Evidências...
Há indícios que levam
a evidências revelados por comportamentos espontâneos de bebês com os livros
que integram seu “repertório literário”. Embora pareça cedo mencionar
repertório quando se trata de um bebê, as atitudes deste em relação aos livros
indicam se já foi apresentado ou não a práticas culturais nas quais o livro é
protagonista.
O que observei, em
pesquisa que venho desenvolvendo com bebês entre zero e três anos desde 2015, é
que há gestos, ritos, modos de ter contato com o livro mesmo quando o bebê
indistingue o artefato cultural de qualquer outro objeto. Esses modos de
manipular o objeto independem de sua idade cronológica e revelam o quanto
familiarizado o bebê está com livros e modos de ler.
Em muitos casos, o
bebê confunde o livro com um objeto qualquer, como um chocalho, bola ou uma
boneca, por exemplo. E inicia sua exploração com os saberes que têm. O primeiro
gesto que observei foi tocar e bater sobre o livro. Ele busca sentir as dimensões
do objeto.
Logo depois, o bebê
está em busca de um modo de pegar e aproximar o livro de si e da boca – fonte
conhecida de sensações. Após bater, tocar, pegar a aproximar, o bebê leva o
livro à boca, evidenciando que não conhece, não foi apresentado ao livro como
objeto cultural.
Pode também ocorrer
de o bebê, ao “pegar de qualquer jeito”, amassar, sacudir, virar, rasgar, jogar
fora, afastar, descartar, abandonar, guardar na embalagem. Ao tentar olhar e ou
folhear, se ainda não sabe ou não consegue, pode acontecer dele folhear de
“atrás para frente”, ou pegar várias páginas ao mesmo tempo, folheando “a
grosso modo”. São indícios de que ao bebê, ainda não foram disponibilizados os
rudimentos do comportamento leitor, atitudes prévias e imprescindíveis para a
alfabetização literária, que ocorre entre zero e onze anos.
Entre os bebês que já
foram apresentados ao livro como objeto central da cultura escrita, as atitudes
são diferentes e, de forma mais intensa, também manifestam seu repertório de
informações sobre o livro, a leitura e a literatura.
Entre as evidências
do comportamento adquirido – quando o bebê indica perceber os ritos no trato
com o livro – pude observar que o bebê costuma folhear e ajudar o adulto a
folhear.
Quando este está
lendo, ouve com atenção. Se lhe é oportunizado, segura sozinho o livro,
imitando a ação do adulto. Quando permitem, escolhe o que quer que leiam, abre,
observa, fecha, troca, guarda. Eventualmente, reclama se o livro se fecha e
comemora ter encontrado algo conhecido em alguma página ou capa.
Ao apontar o livro ou
imagens nele, indica ao adulto que o livro está danificado (riscado, rasgado,
amassado), responde a perguntas olhando e/ou apontando para imagens ou cenas ou
escritos, e balbuciar, exclamar, por a mão na cabeça e “ler” em voz alta, com
entonação, são alguns dos indícios de que o bebê sabe claramente quais os ritos
esperados quando objeto em interação é o livro.
Percebi que alguns
bebês estranham quando o livro é desconhecido, mas podem comparar, descartar,
fechar ou devolver ao dono, se não querem a interação com aquele livro, por
exemplo.
Procedimentos
para produzir um repertório literário para bebês.
A “apresentação” do
livro e de “ritos do ler” dá início à formação do leitor literário já na
primeiríssima infância, nem sempre oportunizada no ambiente familiar, devendo
necessariamente ocorrer na escola. No processo, a escolha criteriosa de livros
e a integração dos bebês ao comportamento leitor são preponderantes.
Para que tenhamos
disponível um repertório a oferecer, é importante se cercar de narrativas familiares
que prepararam a chegada deste bebê ao mundo. Assim, as primeiras histórias e
serem narradas, oralmente, ao bebê, são as que integram a sua vida. Logo
depois, deve-se agregar a essas, as dos demais sujeitos que habitam o seu
mundo: irmãos, avós, tios e tias, pai e mãe...
Os livros - de todos
os gêneros - podem ser apresentados desde sempre e logo que o bebê fique ereto
em seu colo, coloque a sua frente, um livro aberto. Contenha o bebê com teu
braço esquerdo e leia para ele, deleitando-se também com o que vê, conhece e
sente.
Pronto.
É assim que se
inicia.
Depois disso, amplie
e diversifique seu acervo.
Não esqueça os ritos,
tão importantes quanto os conteúdos literários neste momento: olhar, escolher,
folhear, ler, observar, discriminar, evidenciar, relacionar, cuidar, fechar,
guardar. Todas essas práticas integram a formação do leitor desde a
primeiríssima infância e logo, logo, o pequeno terá seus prediletos.
E
por falar em dicas...
Minhas sugestões para
a escolha de livros estão baseadas em minha experiência pessoal. Estudiosa da
área e leitora voraz de literatura escrita para crianças há 26 anos, sugiro ler
antes de comprar. Sempre. É a dica mais importante.
A segunda dica é: conheça
o seu público ou para quem você vai ler. Isso ajuda a escolher um gênero, um
título, um autor...
Os outros critérios
que utilizo na escolha de uma obra são:
Autor: escolha um
brasileiro respeitado, indicado por outros leitores, premiado, que as crianças
gostam...
Gênero: narrativas,
poesia, fábulas, lendas, cordel, história em quadrinhos, terror, biografias,
abecedários, recontos...
Editora: Brasileiras
que investam em formato, cor, durabilidade, evidência de autoria, qualidade do
texto e da imagem, durabilidade do impresso, paratextos de qualidade...
Quem indica: se um
conhecedor indicou, se confias em quem leu, se há uma lista que a professora
disponibilizou, considere, leve em conta, vá por eles. Quem lê adora indicar
livros aos demais, mas não custa nada ler antes...
Valor: entre dois
bons livros, escolha aquele que tem custo/benefício mais evidente. Exemplo: Um
livro com 92 poemas é mais importante que um livro com apenas uma narrativa se os
dois custam a mesma coisa ou têm preços similares;
Ilustração: um livro
com um excelente ilustrador tem seu valor. Afinal, a arte literária pode ser
acompanhada das artes plásticas...
Apaixonamento: confie
em ti. Ao apaixonar-se por um livro, indique, releia, faça circular.